“VEJA” especial apresenta: “O Sucesso dos Beatles”!

Veja - Os Beatles invadem a América

Nesta edição especial lançada pela Revista VEJA em fevereiro de 1964, quando os Beatles chegaram na América, foram publicados os artigos incluindo:

– A Invasão da América (entrevistas e imagens)

– As Origens

– Os Quarry Men

– Em Hamburgo

– A Explosão

– O Rock Britânico

– O Sucesso

– Entrevista

– Os fãs

– Ponto de Vista (George Martin)

EDIÇÃO: Giancarlo Lepiani | REPORTAGENS: Paulo Cunha | ARTE: Alexandre Hoshino e André Fuentes | VÍDEOS: Carlos Eduardo Jorge

A Invasão da América
Quatro rapazes britânicos chegam em Nova York, cativam o país todo e são vistos por 73 milhões de pessoas na TV. Mas fenômeno chegou para ficar?

ENTREVISTA
Brian Epstein, o homem que criou a mania
O empresário dos Beatles conta como descobriu a banda e
explica qual foi a transformação a que submeteu os jovens.

EM IMAGENS
Quando os astros transformam-se em fãs
Saiba quais foram os músicos que inspiraram os Beatles, e
como as canções e estilos deles marcam a banda britânica.

As Origens
Histórias das infâncias de John, Paul, George e Ringo

Os Quarrymen
Uma banda formada na escola dá origem aos Beatles

Em Hamburgo
Temporada alemã ajuda a criar som e visual do grupo

A Explosão
Como eles conquistaram a América
Ascensão meteórica, desde um pequeno clube em Liverpool até o topo da paradas.

Rock Britânico
Resistência americana aos ingleses
Terra da rainha vira a nova casa do rock, mas emplacar nos EUA já é outra história.

O Sucesso
E a publicidade acertou na mosca…
Estratégia de marketing espalha bottons, adesivos e até perucas em lojas do país.

Entrevista
Eles cativaram os jornalistas em NY
Leia transcrição completa da coletiva da
banda após desembarque em aeroporto.

Os Fãs
Beatles na versão brasileira e mirim
Garotos paulistanos imitam a banda e não perdem um detalhe da mania dos Beatles.

Ponto de Vista
George Martin, o produtor dos hits
Ele explica como conseguiu essência do grupo e registrar em disco a sua energia.

Beatlemania
Quatro garotos britânicos desembarcam em Nova
York, cativam multidões e fazem um show visto
por 73 milhões de pessoas pela TV. Os adultos
torcem o nariz, mas esse fenômeno chegou para ficar

A espera foi longa e sofrida – ao menos para os padrões de um adolescente que não consegue tirar alguma coisa da cabeça. Demorou mais de um ano desde que eles estouraram na terra da rainha, mas os americanos finalmente puderam ver de perto os Beatles, o jovem fenômeno britânico que contagia multidões e enlouquece seus fãs, no último dia 9, no Ed Sullivan Show, da TV CBS. A audiência televisiva da apresentação, realizada num teatro da Broadway, em Manhattan, foi nada menos que impressionante: 73 milhões de pessoas ficaram grudadas à tela durante a exibição. A partir do momento em que Paul McCartney abriu a boca para cantar close your eyes and I’ll kiss you (de All My Loving), não tinha mais volta. Não há um canto da América que não tenha sucumbido à febre da chamada “beatlemania”.

Foram cinco canções apenas: All My Loving, Till There Was You, She Loves You, I Saw Her Standing There e I Want To Hold Your Hand, mas foi o bastante para que os Beatles tivessem os Estados Unidos a seus pés. Mas o começo ainda foi tenso, por conta de um contratempo: o guitarrista George Harrison só conseguiu subir ao palco às custas de muito remédio, por causa da violenta gripe com a qual tinha desembarcado na América. George não participou da passagem de som e nem do teste de palco para as câmeras, realizados no dia 8. Quando os Beatles tocaram Till There Was You, John Lennon foi enquadrado pela câmera, e uma legenda divertida apareceu: Sorry girls – he’s married (“Desculpem, garotas – ele é casado”). Segundo a produção do programa, a platéia que assistiu os Beatles dentro do estúdio da CBS foi de 728 pessoas – todas elas agora na mira da inveja de dezenas de milhões de fãs.

Não é para menos. A apresentação dos Beatles no programa já entrou para a história. Há mais de uma década, o carismático Ed Sullivan apresenta o show de variedades que se tornou uma verdadeira instituição americana. Todos os domingos, às 20 horas em ponto, os telespectadores ligam a TV e não perdem uma cena do programa, transmitido ao vivo – não só para ver nomes consagrados da música popular, mas também para descobrir novas tendências e talentos promissores. Com os Beatles não foi diferente, ainda que tenham se apresentado entre comediantes e shows de mágica. Na noite em que os quatro rapazes ingleses tomaram o palco, algo de muito especial aconteceu. Numerosos artistas já tiveram a chance de se apresentar ali. O impacto do show dos britânicos, porém, parece ter sido mais poderoso do que qualquer outro.

Um exemplo? A polícia de Nova York informou que, durante o tempo em que os Beatles se apresentaram naquela noite de domingo, não houve um crime sequer reportado nos Estados Unidos. Ao ser questionado sobre isso, George Harrison brincou: “Até os criminosos pararam durante 15 minutos enquanto estávamos no ar”. E ele está certo. Difícil ficar indiferente a uma apresentação da banda. Não é apenas o charme de John, Paul, George e Ringo que contagia. As melodias são memoráveis e as letras das canções são diretas e coloquiais, criando um elo emocional instantâneo entre os quatro garotos e seus fãs. As mensagens são claras: “de mim para você”, “ela te ama”, “quero segurar sua mão”. Nada mais simples, nada mais doce. Os Beatles, pelo que se vê, aprenderam esse truque ouvindo muito Carole King e Gerry Goffin, do Brill Bulding.

Estratégia e promoção
Quando a gravadora Capitol lançou I Want To Hold Your Hand e I Saw Her Standing There, em 26 de dezembro do ano passado, o coração da indústria musical americana já estava preparado. Já na semana seguinte, o disco entrou na parada, em 83º lugar,pulando para 42º na outra semana e chegando ao topo em 15 de janeiro. Os Beatles, que na ocasião estavam trabalhando duro em Paris, comemoraram com o empresário Brian Epstein (que colocou um penico na cabeça imitando um chapéu) e com o produtor George Martin, os dois mentores do sucesso do grupo.

Antes da primeira incursão até os EUA, a Capitol montou um cuidadoso esquema de divulgação, incluindo anúncios, aparições promocionais e até peças publicitárias.Além da agenda montada pela gravadora, Brian havia planejado outras aparições para a banda. Com muita insistência, convenceu Sullivan a receber os Beatles em seu conceituado programa de TV. Quando o apresentador estreou seu show, em 1947, já era respeitado nos bastidores da TV americana (ele vem do colunismo social e também teve passagem pelo rádio). O programa dele, contudo, não foi o único responsável por dar início à febre.

Na verdade, a conquista dos Estados Unidos começou já no dia 7, quando o voo 101 da Pan Am aterrissou em Nova York, no Aeroporto Internacional da cidade (que há dois meses passou a ser chamado de John F. Kennedy, em tributo ao presidente morto no ano passado). No exato instante em que os Beatles pisaram pela primeira vez em solo americano, cerca de 10.000 fãs entraram em delírio à beira da pista. E a cena atraiu a atenção do mundo todo. A histeria da beatlemania é algo até hoje nunca visto, nem nos anos de Elvis Presley.

Humor contagiante – Aproximadamente duzentos jornalistas estavam a postos no saguão do aeroporto. Os repórteres pareciam certos de que conseguiriam arrancar alguma declaração tola ou polêmica dos rapazes. Mas os quatro lançaram mão de seu charme e irreverência e dobraram qualquer resistência à sua chegada.

Quando um repórter perguntou sobre um movimento em Detroit para acabar com os Beatles, Paul respondeu: “Nós também temos nosso movimento para acabar com Detroit”. Quando a entrevista começou a ficar muito barulhenta, John soltou um sonoro “calem a boca”. Todos riram. No dia seguinte, o jornal londrino The Times publicou: “O humor dos Beatles é contagiante”.

Os garotos de Liverpool não são, contudo, uma unanimidade. O mundo adulto não sabe bem o que fazer com eles. Boa parte da imprensa “séria” americana tratou o quarteto com condescendência. Como a abertura da reportagem da revista semanal Newsweek: “Visualmente, são um pesadelo. Ternos eduardianos apertados e cabelos em forma de tigela. Musicalmente, um desastre: guitarras e bateria detonando uma batida impiedosa, que afugenta ritmo, melodia e harmonia. As letras (pontuadas por gritos de ‘yeah, yeah, yeah’) são uma catástrofe, um amontoado de sentimentos baseados em cartões do dia dos namorados”.

Seguindo a mesma linha, O New York Daily News publicou: “Bombardeada com problemas ao redor do mundo, a população voltou seus olhos para quatro jovens britânicos com cabelos ridículos. Em um mês, a América os terá esquecido e vai ter que se preocupar novamente com Fidel Castro e Nikita Krushev”. Mas será mesmo que eles logo mergulharão de volta à obscuridade? Os Beatles podem parecer estranhos a princípio, quase como bonecos. Mas uma os difere do resto das estrelas que dominam as paradas de sucessos hoje em dia: ninguém os manipula. O jovem quarteto provou que artistas pop não têm que ser falsos ou bobos, ou uma combinação de ambos. O importante é que são reais. Fumam, bebem, até falam palavrões. E derrotam seus inimigos com charme e um doce sorriso.

Na virada para 1964, os Beatles se tornaram a maior banda do mundo. Agora, há uma câmera ligada em qualquer lugar em que estejam. A visita aos EUA só potencializou o espantoso assédio a que são impiedosamente submetidos: são filmados ou fotografados dentro do avião, com a multidão à espera no aeroporto, no desembarque, na entrevista coletiva, dentro da limusine, no hotel, nos estúdios de rádio do DJ nova-iorquino Murray the K (talvez o maior incentivador da beatlemania nos EUA), e, claro, no palco do Ed Sullivan Show. As lentes que capturaram a eletrizante apresentação dos quatro no programa, porém, fizeram mágica. Transmitiram para mais de 70 milhões de pessoas uma sensação que já tinha conquistado multidões de fãs do outro lado do Atlântico. Apostar que tenha sido apenas uma febre momentânea parece no mínimo arriscado.

Primeira apresentação no Ed Sullivan – 09-02-1964

As origens – Infância Turbulenta
De onde vieram os Beatles? A seguir, a história dos quatro rapazes – o órfão problemático, o estudioso que quase virou professor, o caçula que cresceu no conforto e o pobretão aprendiz de eletricista.

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Liverpool, cidade do noroeste da Inglaterra, desenvolveu-se a partir de um vilarejo de pescadores fundado em 1207. Era um porto como outro qualquer até o século XVII, quando lá se estabeleceu o comércio com a América do Norte. Foi de seu cais que partiram quase 10 milhões de ingleses para os Estados Unidos. Também foi por ele que chegaram centenas de milhares de imigrantes irlandeses, como Jack Lennon e Owen Mohin, avôs paternos de John Lennon e Paul McCartney, respectivamente. Era por Liverpool também que desembarcavam as novidades do exterior –como, na década de 1950, o rock’n’roll. Os Beatles são filhos da classe operária inglesa. Nasceram durante a II Guerra Mundial e a maior parte de sua infância refletiu a turbulência daqueles anos.

John Winston Lennon nasceu em 9 de outubro de 1940, bem na época dos ataques alemães à Liverpool. O nome do meio foi uma homenagem a Winston Churchill, primeiro-ministro britânico durante a guerra. Seu pai, Alfred, era marinheiro e abandonou a família quando John tinha apenas 4 anos. Julia, sua mãe, logo arrumou um namorado e foi morar com ele – que impôs a condição de não ter de criar o filho de outro homem. Assim, ela pediu que sua irmã, Mimi, cuidasse do pequeno John. Tia Mimi, a mais velha de cinco irmãs (Julia era a caçula), e tio George moravam em uma bela casa geminada em Woolton, um subúrbio de classe média, habitado em sua maioria por famílias de médicos e advogados. Embora tivesse crescido num ambiente de conforto e ternura, John carregava as marcas do abandono, e seus anos de escola foram caracterizados por uma propensão crescente a se meter em confusões. Carismático e com um forte espírito de liderança entre seus colegas, ele exercitava seu espírito sarcástico e sagaz contra amigos, inimigos, professores, familiares e qualquer pessoa que representasse a figura da autoridade.

Em 1952, um ano depois de ter entrado na Quarry Bank School, seu amado tio George morreu, e John voltou a se aproximar da mãe. Julia era uma típica dona de casa inglesa, mas gostava de se apresentar como cantora e comediante amadora. Foi ela que ensinou os primeiros acordes ao filho adolescente – o curioso é que não foi no violão, mas num velho banjo. John tinha 15 anos quando Heartbreak Hotel, de Elvis Presley, subiu ao segundo posto da parada britânica. Para ele e para vários garotos de classe média, o rock’n’roll chegava para mudar tudo. Nessa época, John e a mãe viam-se regularmente e ela tornou-se uma parte importante em sua vida. Mas da mesma forma repentina que a amizade e o amor entre os dois floresceram, eles terminaram. Em 15 de julho de 1958, Julia morreu atropelada por um policial bêbado.

Orfandade e guitarra
James Paul McCartney nasceu em 18 de junho de 1942. Morava em um bairro mais pobre, mas vinha de uma família mais bem alicerçada, de pais amorosos. Jim McCartney, um vendedor de algodão, e Mary, uma enfermeira, tiveram dois filhos, James Paul e Michael. Paul, tendo passado de forma tranquila seus anos escolares, foi aceito no renomado Liverpool Institute. Aos 14 anos de idade, perdeu a mãe repentinamente, vítima de câncer. Como John, viu na música uma espécie de terapia para superar a orfandade. Voltou-se para sua guitarra de maneira obsessiva, a ponto de ela tomar conta de sua vida. Enquanto se preparava para a carreira de professor de inglês, Paul começou a pentear seu cabelo para trás e a se vestir como um roqueiro. Foi nessa época que conheceu John Lennon.

George Harrison, nascido em 25 de fevereiro de 1943, é filho de um motorista de ônibus e de uma dona de casa. Raramente passava por alguma dificuldade na infância – ela não foi tão traumática como a dos colegas de banda. George é o mais novo de quatro filhos e cresceu em um ambiente familiar de união. Sua forma de rebeldia era usar seu longo cabelo penteado para trás e se vestir de forma escandalosa. Isso não o impediu de entrar no Liverpool Institute. Desde muito novo, George passou a se dedicar à música com paixão. Com a ajuda da mãe, comprou uma guitarra nova e logo formou seu próprio grupo, Os Rebels. Foi nessa época que conheceu Paul McCartney, que pegava o mesmo ônibus para ir ao colégio, e passaram a tocar juntos.

Ringo Starr, nascido Richard Starkey Jr., em 7 de julho de 1940, é o mais velho dos Beatles. Sua vida começou em circunstâncias parecidas com a de John Lennon. Seu pai, Richard, e sua mãe, Elsie, se separaram quando ele era garoto. Enquanto a herança de John foi o desequilíbrio emocional, Ringo teve que enfrentar uma saúde debilitada e um ambiente pobre. Um apêndice supurado e uma pleurisia o deixaram no hospital por três de seus primeiros quinze anos. Por estar sempre doente, quase não frequentou a escola e mal conheceu o pai. Dos quatro, era o único que morava num local considerado barra-pesada, Dingle, que ficava perto das docas. Quando tinha 18 anos e trabalhava como aprendiz de eletricista, Ringo ganhou sua primeira bateria. Foi seu bilhete de saída para uma vida incomparavelmente melhor do que a que tinha até então.

Berço do rock – Apesar de serem da classe média baixa, nenhum dos quatro Beatles deixou de ter acesso à cultura na adolescência. Isso graças a um fenômeno tipicamente inglês, as chamadas escolas de arte. Elas eram gratuitas e abertas a todas as classes sociais. As aulas não se limitavam às artes plásticas, abrangendo também teatro e literatura. Desde o começo desta década, pode-se dizer que as escolas de arte britânicas foram o berço de muitos artistas de rock – casos de John Lennon, Stuart Sutcliffe e Paul McCartney. Ainda assim, se não tivessem se tornado os Beatles, o futuro poderia ter sido bem menos ruidoso: John e Stu pensavam em ser pintores; Paul, professor de inglês; George nunca cogitou seriamente outra coisa além da música; e Ringo pretendia ingressar na marinha mercante.

Hamburgo: Adeus à Adolescência
A temporada alemã dos Beatles foi fundamental para a definição do
som, do visual e da postura da banda. Os meninos que viajaram para Hamburgo voltaram homens – e agora formavam um quarteto afiadíssimo.

Veja 3

Em 1960, os Quarrymen deixaram de existir como um grupinho de fim de semana e deram seu lugar para os Beatles, uma banda “semiprofissional” de rock’n’roll. Esse processo, na verdade, não se deu de uma hora para a outra e passou por uma evolução nos nomes – de Moondogs para Long John and The Silver Beetles, depois para Silver Beetles, e finalmente para Beatles. O nome definitivo veio da paixão deles pelos Crickets (grilos), grupo de Buddy Holly. Assim, eles combinaram beetles (besouros) com o nome que se usava na época para definir o rock: música beat (batida).

No começo, o trabalho da banda ainda era esporádico. Eles tocavam nos bailes das escolas de arte, saíram em turnê pela Escócia como banda de apoio para Johnny Gentle, acompanharam cantoras como Shirley The Stripper e fizeram algumas aparições em clubes de Liverpool, como o Casbah. Foi mais ou menos nessa época, em agosto de 1960, que apareceu um empresário local chamado Andy Williams, que lucrava agenciando shows das bandas de Liverpool no exterior. Williams conseguiu um contrato interessante para os Beatles no clube Indra, em Hamburgo, na Alemanha. Na iminência de uma temporada internacional, Paul McCartney lembrou-se de Pete Best (filho da dona do Casbah), que arranhava como baterista, e o chamou para a banda.

Os quatro meses e meio que os Beatles passaram em Hamburgo transformaram a banda – e não só no sentido musical. Tendo que tocar de seis a oito horas por noite, seu repertório aumentou consideravelmente – eles já executavam praticamente todos os hits do rock’n’roll. Sua técnica também se desenvolveu enormemente – os três guitarristas, John, Paul e George, se entendiam tão bem no palco a ponto de, ao tocar uma canção, um adivinhar o que o outro faria em seguida, sem ao menos se olharem. Pelo fato de passar tanto tempo no palco, começaram a criar hábitos pouco ortodoxos, como o de comer sanduíches entre uma música e outra, além de beber e fumar. Em dias de cansaço extremo, chegavam a se revezar: enquanto os outros tocavam, um dormia por alguns minutos atrás da bateria. Apresentando-se em clubes da Reeperbahn, a zona de boates de Hamburgo, os garotos de início ficaram intimidados com o público barra-pesada. Aos poucos, incentivados pelo dono do Indra, Bruno Korschmeier, eles foram aprendendo as habilidades próprias dos artistas profissionais. O público gostava de sua música, e John ocasionalmente brindava a platéia com suas brincadeiras e seus trajes, que incluíam calcinhas e uma tampa de privada em volta do pescoço.

Para um grupo de roqueiros adolescentes – John, o mais velho, tinha só 19 anos – Hamburgo era o jardim dos prazeres. Os rapazes faziam amizade – e algo mais – com as prostitutas, que havia em número abundante, e tomavam quantidades cada vez maiores de comprimidos para emagrecer (as famosas “bolinhas”), que os deixavam acordados por dias inteiros. Seu café da manhã era uma mistura de leite, cerveja e cereal de milho. Mas eles também progrediram no trabalho: foram do Indra para o Kaiserkeller, depois para o Top Ten, e finalmente para o Star Club, o maior e mais movimentado da cidade. Suas acomodações também melhoraram, dentro do possível – de um quartinho atrás da tela de um cinema caindo aos pedaços para um sótão no Top Ten.

Existencialistas – Vários grupos ingleses tocavam nos clubes alemães, como os Hurricanes (que tinham Ringo Starr na bateria). Também se apresentavam por lá cantores como Tony Sheridan. Cumpriam um azeitado circuito de boates, clubes de strip-tease e inferninhos, como os citados acima. A maior parte do público dos shows (além de marinheiros mal-encarados e prostitutas) era formado por roqueiros, que se vestiam à moda teddy boy, com jaquetas de couro e cabelos gomalinados. Mas os Beatles começaram a atrair um grupo de jovens universitários intelectualizados, os chamados “exis” (de “existencialistas”), que curtiam poesia e pintura, com garotas “de bem” e rapazes com cabelos à francesa, penteados para frente. Entre os “exis” que se aproximaram dos Beatles (e logo se tornaram seus amigos) estava a fotógrafa Astrid Kirshner e o estudante de arte Klaus Voorman. Igualmente vindos de escolas de artes, com aspirações nesse campo, os Beatles transformaram-se num misto de roqueiros e “exis” – e logo adotariam o penteado “exi”.

Hamburgo seria o começo do fim para Stuart Sutcliffe. No Keiserkeller, ele conheceu e logo se apaixonou por Astrid, permanecendo na cidade quando a banda voltou a Liverpool. Com a saída de Stu, Paul acabou assumindo o baixo e os Beatles tornaram-se um quarteto. Astrid, que fora a responsável pelo novo penteado do grupo, tirou a primeira foto dos novos cabelos, no telhado de um clube em Hamburgo. Em 10 de abril de 1961, os Beatles tiveram de enfrentar uma tragédia: Stu morreu repentinamente, de hemorragia cerebral. No dia seguinte, os rapazes chegavam a Hamburgo para uma nova temporada, de sete semanas. John Lennon, de todos, foi o que ficou mais abalado.

A volta a Hamburgo era para se apresentar no Top Ten. O quarto em que os Beatles ficaram desta vez era ao lado de onde morava o cantor Tony Sheridan. Ficaram amigos e, durante a temporada, dividiram o palco inúmeras vezes. Quando Tony recebeu um convite para gravar para a Polydor alemã, não pensou duas vezes e levou os Beatles como banda de apoio – que acabou usando o nome Beat Brothers. Lançaram um EP com My Bonnie, Why, Ain’t She Sweet (cantada por John) e a instrumental Cry for a Shadow. O disco foi lançado em agosto de 1961. Nesse tempo, os Beatles já eram um grupo profissional, com empresário e até um motorista – na verdade, o contador Neil Aspinall, que tinha uma perua que colocava a serviço da banda. Já contavam com um público relativamente fiel em Liverpool e eram atração constante no Cavern Club, um clube de jazz convertido em local beat. Seria ali, naquele palco acanhado, que os Beatles encontrariam um caminho rumo ao estrelato.

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A EXPLOSÃO E A CONQUISTA DA AMÉRICA
A ascensão meteórica dos Beatles começou num
pequeno clube de Liverpool e culminou na
escalada até o topo das paradas nos EUA – antes
mesmo de deixar a Europa e cruzar o Atlântico.

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Há pouco mais de dois anos, Brian Epstein, gerente da North End Music Stores, cadeia de lojas de discos e equipamentos de áudio de Liverpool, estava intrigado com todo o alvoroço sobre os grupos beat. Foi ao Cavern assistir aos Beatles em novembro de 1961. Achou tudo aquilo barulhento, mas ficou impressionado com o que classificou de “charme” da banda – sabe-se que Brian é homossexual e tem certa queda por rapazes com fama de bad boys. Prometeu arranjar um contrato de gravação para os rapazes e logo conseguiu um teste na Decca, de Londres, em 1º de janeiro de 1962. Para impressionar os garotos, pagou para que o ex-baterista dos Shadows, Tony Meehan, os produzisse. Baseadas nos sets de Hamburgo, cheias de covers e poucas composições próprias (apenas duas, Like Dreamers Do e Hello Little Girl), as sessões não deram em nada.
Mesmo assim, os Beatles fecharam com Brian, ainda em janeiro de 1962. Uma das primeiras ações do empresário foi sugerir que abandonassem as jaquetas de couro em favor de ternos ao estilo dos grupos mod ingleses. Também proibiu que os rapazes fumassem durante os shows, hábito herdado de Hamburgo – quando a banda costumava comer e até dormir no palco. Ao mesmo tempo em que agendava apresentações e shows de rádio, o empresário ficou com os tapes da Decca e usava-os como uma demo da banda.

Ao dizer que seus garotos estavam em “excursão internacional”, despertou a atenção de George Martin, um famoso maestro britânico, célebre pelo programa The Goon Show. Martin assumira a “linha pop” da gravadora Parlophone, subsidiária da EMI. Após o teste, em junho de 1962, a única exigência de Martin para gravá-los era usar um “baterista profissional”, já que não gostara de Pete Best. Sem qualquer dilema, Epstein e os Beatles demitiram Best e chamaram Ringo Starr.
Ciúme e gravidez – A demissão de Pete Best, logo após a banda ter assinado com a EMI, é uma das maiores puxadas-de-tapete ocorridas na cena musical dos últimos anos. Nenhum dos três Beatles teve coragem de demiti-lo – o trabalho sujo ficou para Brian Epstein. Ao que parece, Brian era apaixonado por Pete e, após sucessivas negativas, não teve remorso em sacá-lo. Testemunhas dão conta do ciúme que Pete, o mais bonito dos quatro, despertava nos colegas de palco. Outro complicador: Neil Aspinall, recém-contratado como roadie, engravidou a mãe de Pete no final de 1961, o que azedou as relações de forma definitiva.
Em 4 de setembro, George Martin recebeu John, Paul, George e Ringo –que só descobriu que não tocaria na sessão às portas do estúdio – nas instalações da EMI em Abbey Road, em Londres. O grupo fez questão de registrar apenas músicas próprias. Em 5 de outubro de 1962, foi lançado o primeiro disco da banda, o single Love Me Do. Com fama crescente no noroeste inglês, a banda vendeu 100.000 cópias do compacto e chegou ao 17º lugar no hit parade do país. A conquista da Inglaterra era o próximo passo.

Em novembro, voltaram aos estúdios para um novo single, Please Please Me, outra composição própria. O acordo entre John e Paul, principais compositores do grupo, reza que todas as músicas da dupla recebam crédito conjunto, mesmo que o parceiro não tenha participado. Ao final dos 18 takes, Martin abriu o microfone e disse: “Rapazes, vocês acabam de gravar seu primeiro número um”. De fato, Please Please Me, lançado em janeiro de 1963, chegou ao primeiro posto da parada, ganhou disco de platina pelas 500.000 cópias vendidas e transformou a banda na “próxima grande coisa” do Reino Unido.

Rumo à América – Os Beatles passaram a ser requisitados para apresentações por todo o país, para entrevistas e para programas na BBC. Depois de um mês, estavam no ponto exato para lançar seu primeiro LP. Gravado em 12 horas, também intitulado Please Please Me, o disco trazia 14 faixas, entre covers (coisas da soul music americana, como Boys e Twist and Shout) e novos hits em potencial, como I Saw Her Standing There. Com dois singles puxando as vendas, Please Please Me também chegou ao topo da parada. Até o fim do ano, a banda tocaria por Escócia, Suíça, toda a Inglaterra, participaria do tradicional programa Sunday Night at the London Paladium (esgotando os ingressos com meses de antecedência), lançaria mais três singles (From Me To You, She Loves You e I Wanna Hold Your Hand) e um segundo LP, With the Beatles, novo número um.

A banda era um sucesso em toda a Europa Ocidental. Faltavam os Estados Unidos. Brian tinha o plano de levar o grupo à América, mas o grupo decidira que não embarcaria sem um single no topo da Billboard. E não era apenas arrogância: muitos nomes famosos na Inglaterra se aventuravam pelos Estados Unidos, esqueciam seu público local e não angariavam a simpatia ianque. Quando já estavam em primeiro lugar no Reino Unido, os Beatles ainda eram ilustres desconhecidos no outro lado do Atlântico, mas, para todos os efeitos, nunca tinham tentado a sério. A verdade é que a própria EMI não se interessara em lançar a banda por lá.
George Martin negociou os tapes pertencentes à Parlophone com dois selos independentes, o Vee-Jay e o Swan, que lançaram alguns singles e a coletânea Introducing the Beatles, sem repercussão. Em janeiro de 1964, após uma temporada de um mês no Finsbury Park de Londres, os Beatles embarcaram para sua primeira turnê pela França. Após reportagens de revistas como Time e Newsweek, a Capitol (o selo jovem da EMI na Califórnia) despertou para a banda e lançou o single I Wanna Hold Your Hand com toda promoção merecida. De longe, sem deixar o Velho Continente, eles conquistavam o Novo Mundo. Em Paris, eles receberam o telegrama da EMI inglesa: “Parabéns, vocês são número um na América”.

ROCK BRITÂNICO / RESISTÊNCIA IANQUE
Na virada desta década, a terra da rainha começou
a produzir grandes legiões de súditos do rock. Mas
conquistar a América era outra história – até os Beatles fracassaram em seus primeiros lançamentos nos EUA

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Nos anos 50, Londres era uma cidade tranquila, repleta de ônibus de dois andares, cabines de telefone vermelhas e parques verdes e espaçosos, que ficavam lotados nos raros dias de sol. Praticamente não havia atividade depois do expediente e os pubs fechavam cedo, assim como o comércio e o metrô. Nem mesmo um cenário pacato e pouco excitante como esse ficou imune à explosão mundial do rock exportada pelos Estados Unidos na década passada. Os garotos ingleses consumiam avidamente Elvis Presley, Buddy Holly & The Crickets, Little Richard, Chuck Berry e outros tantos. Não demorou muito para que os talentos locais despontassem. Tommy Steele, Cliff Richard & The Shadows, Marty Wilde, Adam Faith e Billy Fury foram verdadeiros pioneiros e seu sucesso criou um mercado relativamente forte para o rock nacional.

Para ser mais rigoroso, o pontapé inicial do rock britânico já havia sido encabeçado um pouco antes por Lonnie Donegan, o rei do skiffle. Usando violões acústicos, tábuas de lavar roupa e instrumentos improvisados, o skiffle tomava emprestado do blues, country e folk seu repertório e podia ser tocado por qualquer um. Foi justamente esse o estilo adotado por um grupelho chamado The Quarrymen, de um certo John Lennon. Já Cliff Richard era um verdadeiro fenômeno. No começo desta década, à frente de seu grupo, The Shadows, ele colocou mais de vinte músicas no top 10 inglês. A gravadora Epic, que o representava nos Estados Unidos, gastou uma boa soma tentando fazer com que ele estourasse na antiga colônia. Richard apareceu no Ed Sullivan Show – que lançara Elvis Presley e acaba de consagrar os Beatles na América – e colocou duas músicas no Top 40 americano. E só.
Além desse fato isolado, os americanos continuavam alheios à música que vinha do outro lado do Atlântico. O panorama musical dos Estados Unidos não foi nada ruim nesses últimos anos. Havia o som de Nashville, cantores e compositores de talento (Del Shannon, Gene Pitney, Roy Orbison), surf music, rock instrumental. A Motown dava seus primeiros passos, Phil Spector criava suas minissinfonias para jovens e gigantes da música negra como Ray Charles, Sam Cooke e Jackie Wilson davam forma à soul music. Mas o ano passado foi determinante por posicionar todas as peças que conduziram à chamada “invasão britânica”.
Só para se ter uma ideia, o hit parade americano de 1963 foi dominado por baboseiras do naipe de Sukyaki, com o japonês Kyu Sakamoto. Os descontentes e politizados optavam pelo folk de Bob Dylan, Joan Baez, Peter, Paul & Mary. Eis que, sem querer, um selo independente de Chicago deu o empurrão inicial para o início de uma nova ordem. A Vee Jay Records é uma das mais bem-sucedidas gravadoras de rhythm & blues dos Estados Unidos. Em 23 de fevereiro de 1963, lançou no país um single contendo Please Please Me, de um desconhecido grupo chamado The Beatles.

O motivo?
Os membros do grupo Four Seasons, depois de uma visita à Inglaterra, gostaram tanto do som que recomendaram aos chefes da Vee Jay a compra dos direitos de lançamento daquela canção. Please Please Me fazia um tremendo sucesso na Inglaterra, mas a Capitol (que licenciava os títulos da EMI na América) não se interessou nem um pouco pelos Beatles. Com certa razão: Please Please Me foi um fiasco nos EUA, bem como os discos seguintes – o LP Introducing… The Beatles e o single From Me To You. A Vee Jay perdeu o interesse e She Loves You acabou distribuída sem grande êxito pelo pequeno selo Swan, com sede na Filadélfia. Para essas distribuidoras, ver o sucesso estrondoso da excursão dos Beatles aos EUA causa ainda mais perplexidade do que para quem nem sequer conhecia a banda.

‘She Loves You’, canção que não emplacou em seu primeiro lançamento nos EUA

O SUCESSO / INVESTIMENTO CERTEIRO
Uma espetacular estratégia de propaganda espalhou
anúncios, buttons, adesivos e até perucas dos
Beatles pelos EUA. Deu certo: ‘I Want To Hold Your Hand’ finalmente colocou os ingleses no topo da Billboard.

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O ano de 1963 já estava quase chegando ao fim. No dia 22 de novembro, os rapazes de Liverpool lançaram no Reino Unido seu segundo LP, With The Beatles, repleto de covers de artistas da Motown. Exatamente no mesmo dia, na distante Dallas, no Texas, o presidente John Fitzgerald Kennedy era assassinado. Depois de um período de luto e confusão, o público precisava de novos heróis – mas nada que fosse pretensioso ou político demais. A Europa tinha caído de paixão por quatro rapazes que pertenciam a um grupo de rock com nome bizarro. Quem sabe a mesma mania não emplacasse na América?

Um pouco antes disso, em 5 de novembro, Brian Epstein, o diligente empresário dos Beatles, desembarcou em Nova York. Ele tinha em mente negócios sérios. Depois de uma certa insistência, convenceu John, Paul, George e Ringo a embarcar para uma turnê promocional pelos Estados Unidos. Mas os Beatles foram firmes: só aceitariam quando tivessem uma música no topo da parada. Na cidade, Epstein se encontrou com o onipotente Ed Sullivan, empresário e apresentador de TV que tinha o poder de construir ou eliminar carreiras artísticas. Sullivan, em visita recente à Inglaterra, tinha visto de perto a histeria da beatlemania.

Sullivan queria os Beatles em seu show dominical na CBS, mas achava que eles ainda não mereciam ser a atração principal do programa. Epstein foi convincente em seus argumentos e Sullivan cedeu, mas com uma condição: os Beatles receberiam apenas um cachê simbólico para cobrir as despesas. A próxima parada de Epstein foi a sede da gravadora Capitol. Com a beatlemania varrendo a Inglaterra e a Europa (e repercutindo em revistas importantes, como a Time e a Newsweek), ele conseguiu fazer com que o single seguinte saísse nos Estados Unidos pela empresa. O acordo foi fechado no dia 13 de dezembro. Assim, I Want To Hold Your Hand foi lançada em janeiro deste ano.
A Capitol havia decidido investir para valer. A ideia era que os nomes de John, Paul, George e Ringo se tornassem conhecidos antes mesmo que eles pisassem em solo americano. Além de publicar fartos anúncios nas revistas de música, a gravadora engendrou uma ambiciosa campanha de marketing. Os vendedores da empresa receberam uma montanha de buttons, todos estampando os rostos e os nomes dos Beatles. Seriam distribuídos por todos os cantos. Também fazia parte do kit promocional perucas que imitavam os cabelos dos garotos e adesivos com a frase “Os Beatles estão chegando!” A campanha da Capitol funcionou como uma máquina perfeitamente azeitada.
No dia 1º deste mês, I Want To Hold You Hand chegou ao primeiro lugar da Billboard, desbancando a antiquada There I’ve Said Again, com o crooner Bobby Vinton. Quando os Beatles desembarcaram nos EUA, uma semana depois, o single já havia vendido 1 milhão de cópias. A imprensa passou a falar do grupo espontaneamente. No geral, as críticas ao disco foram positivas, embora o New York Times achasse pouco provável que a beatlemania fosse exportada com sucesso.

Enquanto a Capitol lançava com estardalhaço Meet The Beatles! (uma coletânea produzida sobre fonogramas ingleses), Vee Jay, Swan e MGM entraram na jogada, entupindo o mercado com tudo o que tinham dos Beatles nas mãos. E a mania importada da Inglaterra enfim começava a produzir montes de dinheiro.

‘I Want To Hold Your Hand’, que chegou ao número um nas paradas americanas

ENTREVISTA / ‘CARECAS, SURDOS E BURROS’
Logo na chegada a Nova York, os Beatles deram um
show – mas sem seus instrumentos. Na entrevista coletiva
no aeroporto, esbanjaram bom humor e ironia e
dobraram os repórteres com sua postura despretensiosa

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Fotógrafos a postos. Fãs histéricos. Jornalistas à beira de um ataque de nervos. Seguranças perdidos diante de uma multidão ensandecida. Assim foi a primeira entrevista dos Beatles em solo americano, no último dia 7. A banda já é número 1 na América. A coletiva de imprensa, realizada numa sala do Aeroporto John Fitzgerald Kennedy, em Nova York, já pode ser considerada um marco. Na chegada, John, Paul, George e Ringo foram ciceroneados pelo disc jockey Murray the K. O DJ estreitou laços com o grupo na Europa, alguns meses atrás, quando empresariou bandas que dividiam o palco com os próprios Beatles. Numa mistura de ingenuidade, bom humor e franqueza, os quatro garotos de Liverpool driblaram as mais diversas questões com a sempre afiada ironia inglesa.

Repórter: O que vocês acham de Beethoven?

Ringo Starr: Muito bom. Especialmente seus poemas (risos).

Murray the K: Tem uma pergunta aqui na frente.

Repórter: (gritando sobre a multidão) Vocês poderiam dizer a Murray the K para parar com essa frescura?

Beatles: (gritando e rindo ao mesmo tempo) Pare com essa frescura, Murray!

Paul McCartney: E aí, Murray? (risos)

Repórter: Isto é uma pergunta?

Murray the K: (tentando organizar a bagunça) Vocês ficariam quietos, por favor?!

Repórter: Em Detroit, existem pessoas carregando adesivos nos carros com os dizeres “Mandem os Beatles pra casa”.

Paul: É verdade! Nós trouxemos um adesivo “Mande Detroit pra casa” (barulho da platéia na sala cresce).

Repórter: O que vocês têm a dizer sobre a campanha “Mandem os Beatles pra casa”?

John Lennon: O que temos a dizer?

Ringo: Qual o tamanho desses adesivos?

Repórter: E os comentários de que vocês não são nada além de uns Elvis do Reino Unido?

John: A pessoa que falou isso deve ser cega.

Ringo:(rebolando igual a Elvis) Isso não é verdade! Isso não é verdade!

John:(imita Elvis dançando) (riso geral)

Fã que invadiu a coletiva: Vocês cantariam alguma coisa, por favor?

Beatles: Não! (risos)

Ringo: Desculpe.

Murray the K: Próxima questão.

Repórter: Existem dúvidas se vocês são mesmo capazes de cantar.

John: Não, queremos o dinheiro primeiro (risos).

Repórter: Todo esse cabelo ajuda vocês na hora de cantar?

John: Claro que sim. Com certeza.

Repórter: Vocês se sentem como Sansões? Se perderem o cabelo, não conseguirão tocar?

John: Não sei.

Paul: Eu também não sei.

Murray the K: Tem uma questão aqui.

Repórter: Quantos de vocês são carecas? Vocês usam peruca?

Ringo: Todos nós somos.

Paul: Eu sou careca.

Repórter: De verdade?

John: Sim.

Paul: Só prometa que não vai contar a ninguém, por favor.

John: Carecas, surdos e burros também (risos).

Murray the K: Silêncio, por favor.

Repórter: Vocês são de verdade?

Paul: Somos sim.

John: Venha até aqui sentir (risos).

Repórter: Vocês irão cortar o cabelo no período em que passarem aqui?

Beatles: Não!

Ringo: Nem a pau.

Paul: Não, obrigado.

George Harrison: Eu cortei o meu ontem (risos).

Ringo: É verdade. Ele não está mentindo.

Paul: É a pura verdade.

Repórter: Pensei que o cabelo dele tinha caído.

John: Nada.

George: Não perdi cabelo nenhum.

Ringo: Você deveria ter visto ele ontem.

Repórter: O que vocês acham que a música de vocês causa nestas pessoas (se referindo às fãs enlouquecidas no hall do aeroporto)?

Ringo: Eu não sei. Acho que ela as deixa alegres. Bom, deve ser isso mesmo, afinal elas estão comprando nossos discos.

Repórter: Por que elas ficam tão excitadas?

Paul: Não sabemos. De verdade.

John: Se soubéssemos, forjaríamos uma outra banda e seríamos seus empresários (risos).

Beatles Washington DC Interview 1964 – Rare!

(O vídeo mostrado na VEJA não encontrei no Youtube, mas pode ser visto aqui):

OS FÃS / OS BEATLES DO BRASIL
A mania de imitar os novos heróis do rock
não contagiou só os garotos ingleses e americanos.
Conheça Beto – ou George – e seus colegas,
que formam a versão paulistana dos Beatles

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Beto Iannicelli tinha apenas 8 anos quando conheceu os Beatles, no ano passado. Logo de cara, o menino ficou fascinado pela música que descobriu, sem querer, ao percorrer as estações do rádio de seu pai. Passeando pelo dial, um dia Beto sintonizou a BBC de Londres, em ondas curtas, e ouviu algo que nunca acreditara ouvir – e que, provavelmente, irá mudar sua vida. Morador do bairro Pauliceia, próximo a Santana, na zona norte de São Paulo, Beto e seus vizinhos não conseguem mais brincar de outra coisa: são agora os “Beatles do Brasil”. Na rua onde ele mora com a família, bem em frente à sua casa, vivem dois amigos, Claudio e Antonio Carlos. Claudio tem a mesma idade de Beto, e Antonio Carlos tem doze anos – o mesmo que Aily, irmã de Beto.
odas as tardes, as quatro crianças se reúnem na casa de Claudio e Antonio Carlos. E, então, começa a mágica, uma brincadeira possível apenas no mundo dos pequenos. A cena é a seguinte: Antonio Carlos é Ringo Starr. Sua “bateria” é composta das seguintes peças: um pufe, algumas caixas de papelão, uma lata de biscoitos Piraquê e algumas tampas de panela – que fazem as vezes de pratos. Claudio é John Lennon. Aily, Paul McCartney. E Beto, George Harrison. Os três – John, Paul e George – empunham suas “guitarras”, que são, na verdade, cabos de vassouras com barbantes amarrados às pontas, imitando as correias. Ficam prontos, atentos, apenas esperando que a BBC toque a próxima música dos Beatles. Não é preciso dizer que, nesses tempos em que a beatlemania tomou conta da Inglaterra, é uma música atrás da outra. E então começa a performance das crianças. Imitam os Beatles? “Nós somos os Beatles!”, gritam, em uníssono.

Vitrolinha e carrapeta – Beto, como George, é o solista da banda. Quando chega o momento do solo, só ele – e mais ninguém – pode fazer movimentos na “guitarra”. Se algum outro fizer, a apresentação termina imediatamente, seguida do choro escandaloso do “astro”. Como é o caçula do grupo – assim como George nos Beatles originais –, todos aceitam e mantêm-se nas “funções” preestabelecidas. Beto estuda numa escola que fica no fim da rua onde mora. Sua rotina é ir à aula de manhã, voltar na hora do almoço, e preparar-se ansiosamente para as “apresentações” da banda, que acontecem sempre à tarde. É assim todos os dias da semana. Há poucos meses, começou a aprender violão. Era inevitável. A família apóia – principalmente sua mãe, que agora pode contar novamente com as vassouras cumprindo suas funções normais de limpeza da casa. Beto já começa a praticar no instrumento, ouvindo e tentando tirar as duas músicas do único single dos Beatles lançado no Brasil até agora, Please Please Me e From Me To You.
As ondas curtas da BBC atraem também os mais velhos. Os pais e tios de Beto costumam passar um bom tempo na frente do rádio, tentando traduzir alguma coisa do que ouvem. Não é muito fácil, pois não são muito familiarizados com o inglês e, além disso, os locutores britânicos falam rápido demais. Juntamente com as revistas sobre os Beatles que começam a pipocar nas bancas nos últimos meses, é a única forma de saber das notícias sobre a banda. Embora pertençam a uma família de classe média baixa, os pais do pequeno Beto procuram atender como podem todas as reivindicações “beatlemaníacas” do filho. “Reivindicações que se transformam em esperneações sem fim, caso não sejam atendidas”, conta a mãe de Beto. E ela se emociona ao lembrar do primeiro corte de cabelo beatle do filho (“com aquela franjinha na altura das sobrancelhas”), de seu sorriso quando ganhou no Natal passado sua beatle-botinha com salto “carrapeta”, da vitrolinha portátil tocando Beatles sem parar, do álbum de figurinhas, e, principalmente, do amor que Beto começou a nutrir por esses quatro rapazes de Liverpool. Um amor que, promete ele, deverá sobreviver, incondicionalmente.

PONTO DE VISTA: GEORGE MARTIN
A Fábrica de Hits

O produtor responsável pelas gravações de sucesso dos Beatles explica como conseguiu capturar a essência do grupo e registrar em disco toda a energia que os rapazes apresentavam no Cavern.

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Minha admiração pelos Beatles começou antes mesmo de eles pisarem nos estúdios da EMI, em Abbey Road, onde trabalho como produtor musical. Eu tinha estado no Cavern e visto uma apresentação deles, conhecia seu repertório, sabia o que podiam apresentar, e então disse: “Vamos gravar todas as músicas que vocês têm. Venham até o estúdio e faremos uma gravação rápida em um dia”. Começamos por volta das 11 da manhã, terminamos às 11 da noite, e gravamos um álbum completo durante esse tempo. Portanto, podemos dizer que o primeiro LP dos Beatles foi gravado em doze horas.

O primeiro álbum foi, na verdade, uma amostra do repertório deles. Normalmente, gravamos singles, e as músicas que não são lançadas como singles vão para os álbuns. O segundo LP, With The Beatles, também foi feito assim. É apenas uma coleção de suas músicas, e uma ou outra feita por outras pessoas. Só agora isso está mudando, as bandas estão começando a pensar um álbum como algo completo e com identidade própria. Já estamos comprometidos com essa nova ideia para o próximo disco, que será lançado neste ano.
Inicialmente, os Beatles não tinham muita experiência em gravações. A coisa funcionava de um jeito muito simples: eles ensaiavam uma música e ela era gravada em seguida. Eu os encontrava, trabalhava no material disponível e pedia que apresentassem a próxima. Eles então ensaiavam e a gente gravava. Foi somente depois do primeiro ano que eles começaram realmente a se interessar por técnicas de estúdio. Agora são mais exigentes e por isso nem sempre tudo fica pronto no primeiro take. Eles escutam e aí repetem tudo duas ou três vezes até conseguirem o que querem. Mas isso começou agora. Só mais recentemente puderam arcar com mais tempo de estúdio e refazer todas as gravações que desejam.
Como produtor musical, não tenho grande influência nas letras dos Beatles. Apenas digo quando acho que uma letra não soa muito bem, ou sugiro que façam outros oito compassos ou mais, mas eles normalmente me dão as músicas prontas. Meu trabalho é principalmente contribuir com ideias para os arranjos. Devo confessar que, no ano passado, cheguei a pensar que os Beatles não durariam. Mas foi muito gratificante quando eles chegaram no topo das paradas.
Levou um ano inteiro até conseguirem um sucesso internacional. Só agora alcançaram o primeiro lugar nos Estados Unidos – todo o ano de 1963 foi dedicado a consolidar o nosso trabalho na Inglaterra. Lançamos vários singles de sucesso, como Please Please Me, From Me To You, She Loves You e I Want To Hold Your Hand. Assim que gravávamos, eu mandava uma cópia para meus amigos da Capitol Records, nos EUA, dizendo: “Este grupo é fantástico, vocês precisam ouvi-los, lançá-los e vendê-los aí”. E era sempre a mesma coisa. Eles recusavam, dizendo: “Sinto muito, mas conhecemos nosso mercado melhor do que você, e além disso eles não são muito bons”. Fico imaginando o que eles devem estar pensando agora.

EDIÇÃO: Giancarlo Lepiani | REPORTAGENS: Paulo Cunha | ARTE: Alexandre Hoshino e André Fuentes | VÍDEOS: Carlos Eduardo Jorge

NOTA: A Revista VEJA teve sua primeira publicação datada de 1968, portanto esta Revista foi uma edição especial, como se em fevereiro de 1964 tivesse acontecido a edição.