No dia em que lamentamos os 12 anos da partida de George Harrison, ele recebe homenagens diversas, de todo canto do mundo. É também em sua homenagem que estou compartilhando esta matéria, que são textos contendo explicações pelo próprio George, de como ele compôs algumas de suas canções.
Os textos foram retirados de sua autobiografia intitulada “I Me Mine” e da autobiografia “Wonderful Tonight”, de sua primeira esposa, Pattie Boyd.
Don`t Bother Me
“A primeira que fiz, uma espécie de exercício para ver se eu era capaz de compor. Escrevi num hotel em Bornemouth, Inglaterra, onde tocamos no verão de 1963. Eu estava me sentindo mal e de cama, por isso se chamou “Don’t Bother Me” (Não me Amole). Não é uma boa canção, mas serviu para me convencer que eu devia insistir e algum dia faria algo legal.” Está no LP With The Beatles, de 22 de novembro de 1963.
“A Beatlemania, taí uma coisa que eu não gostaria de repetir nunca mais. Era horrível, mas legal também às vezes. É como Cuckoo’s Nest [Um Estranho no Ninho], quando você sabe que é são, mas só tem doidos à sua volta, como os guardas, as enfermeiras, o governo, todo mundo. Chegou um ponto em que sabíamos que não éramos loucos, mas era só a gente chegar numa cidade que todo mundo embarcava na viagem chamada Beatles e enlouquecia.
A gente nada fazia pra encorajar aquilo tudo. A coisa vai crescendo, engolfa a nossa vida particular em grandes ondas e a gente tem que se virar para que aquilo volte ao normal, e que se transforme em águas tranquilas. Ao mesmo tempo, as pessoas com quem trabalhamos ficam tentando acirrar tudo de novo. É um estado permanente de colisão. Perguntavam se a gente não vivia fora da realidade. Respondia que a realidade é um conceito, e para a maioria das pessoas, é uma ilusão.
Eu não sou George, sou essa coisa viva que segue em frente e sempre seguirá enquanto eu estiver neste corpo, que foi bebê, jovem, logo será velho e morrerá. Se acham isso de nós é um conceito pessoal deles. Há conceitos que se acumulam em camadas e mais camadas de ilusão. Por que viver na escuridão a vida toda? Procure a luz interior. Esta é a grande mensagem. (I Me Mine)
O interesse de George pela música indiana começou na trilha sonora do filme Help! Ele comprou uma citara indiana e foi apresentado ao mestre Ravi Shankar, que o tomou como aluno. Estudou cítara de 1965 a 1968.
Something
“Feita ao piano nas sessões do álbum branco em 1968. Teve um intervalo para Paul fazer umas dobras, então fui para o estúdio um, que estava vazio, e comecei a compor. Não entrou no álbum branco porque o repertório estava fechado. Eu dei primeiro para Joe Cocker, antes de eu gravar. É a minha canção mais bem sucedida, com mais de 150 regravações. Minha favorita é a versão com James Brown.
Quando a compus imaginei Ray Charles cantando e ele realmente gravou. Gosto muito também da versão de Smokey Robinson.” (LP Abbey Road – 26 de setembro de 1969).
“Fiquei muito feliz na primeira aula, por estar com um grande mestre que se dispôs a começar do nada, com um principiante. Uma coisa que aconteceu diz muito sobre o tema. Estava em aula, o telefone tocou, deixei a cítara de lado e me levantei para atender. Ravi brigou comigo: ‘Você precisa ter mais respeito pelo instrumento.’ Aprendi que não se pode apreciar nada sem respeito e disciplina. Aquilo fez sentido pra mim. Sempre achei o fim alguns músicos quebrarem seus instrumentos nos shows. Foi muito difícil aprender, as pernas doíam terrivelmente pela posição de lótus e o bojo do instrumento se apóia no pé esquerdo.
No verão de 1968 me hospedei num hotel de Nova York onde estavam Eric Clapton e Jimi Hendrix. Tinha a cítara comigo. Eric me deu uma Les Paul que me ajudou a decidir voltar para a guitarra. Eu me sentia em casa na Índia, mas jamais conseguiria ser um bom instrumentista ao estilo indiano. Ravi tinha me mostrado mais de 100 músicos da cítara, todos bons, mas ele disse que apenas um deles se tornaria um mestre do instrumento. Compreendi que ser um virtuoso na citara tinha um padrão bem superior ao de ser um músico clássico ocidental. Eu devia ter começado pelo menos uns 15 anos antes.” (I Me Mine)
Em sua autobiografia, “Wonderful Tonight”, Pattie Boyd conta sua vida conjugal com Harrison e revela que ele a pediu em casamento no primeiro dia de filmagens de A Hard Day’s Night, em 1964. Os dois riram e George a convidou para sair, mas ela recusou porque tinha namorado. Chegou a perguntar se o namorado podia ir também. George sorriu e se despediu. Quando ela contou para as amigas que tinha dado este fora num Beatle, o mundo desabou sobre sua cabeça. Ela acabou o namoro, rezou por uma segunda chance, que veio quando voltou ao set de filmagens, 10 dias depois, para novas cenas. George perguntou como estava o namorado, Pattie contou que terminara e George a convidou para sair. Casaram em 21 de janeiro de 1966, após dois anos de namoro conturbado pelos compromissos de George e pelos compromissos dela, que era modelo.
My Sweet Lord
“Inspirei-me ao ouvir a versão das Edwin Hawkins Singers de Oh! Happy Day. Pensei muito se devia fazer My Sweet Lord porque estaria me comprometendo publicamente e achei que muita gente ia reagir mal, porque as palavras Lord e God as deixam furiosas por alguma razão. Eu estava colocando minha cabeça no cadafalso porque eu teria que sustentar aquilo, mas ao mesmo tempo pensei que ninguém falava a respeito, bem que gostaria que tivesse alguém fazendo isso. Todo mundo estava só fazendo coisas tipo Be bop baby, que é OK para dançar, mas eu era ingênuo e achava que devíamos expressar nossos sentimentos e não omiti-los. Foi o que senti: Porque devemos ser infiéis a nós mesmos? Comecei a acreditar na importância de expressar meus sentimentos mais fortes (…) Não percebi a semelhança com He’s So Fine, teria sido tão fácil mudar algumas notas.” Pattie conta que depois desse processo por plágio George nunca mais ouviu rádio para não ser influenciado por nada. (LP All Things Must Pass, 30 de novembro de 1970).
“Os Beatles viviam uma vida irreal. Ficaram famosos ainda muito novos e não pararam mais de trabalhar. Não tiveram oportunidade de amadurecer como a maioria das pessoas. Quando a fama chegou, eram tão assediados por fãs e todo tipo de gente, que se resguardavam sob o guarda chuva protetor do empresário Brian Epstein. Em muitos aspectos eram crianças ainda. Pouco sabiam da vida e nem tinham motivação para aprender. Se queriam alguma coisa era só pedir ao Brian. Um dia em dezembro de 1965 andando de carro, George me disse de repente: ‘Vamos casar? Vou falar com o Brian.’ Ele parou na frente da casa do empresário, saiu e voltou minutos depois: ‘Brian disse que está tudo bem. Casa comigo? Pode ser em janeiro.’
Fiquei muito feliz, emocionada, mas não deixei de perceber que ele precisou falar com o Brian antes para ver se não havia alguma turnê marcada.” (Wonderful Tonight).
George conheceu o LSD em 1965, o que lhe deu os primeiros insights e indagações pessoais e filosóficas que encontrariam resposta na filosofia indiana. No verão de 1967 ele e Pattie foram ao “quartel general” do movimento hippie, o bairro de Haight-Ashbury, o nome de duas ruas locais. Eles estavam hospedados numa casa em Los Angeles, em Blue Jay Way, e resolveram dar um pulo na vizinha San Francisco. Eles foram até lá com quatro amigos.
“Achávamos que era um lugar especial, criativo e artístico, com pessoas bonitas, mas era horroroso. Estava cheio de gente cadavérica, jovens sujos e largados. Todo mundo parecia estar doidão, incluindo mães e filhos. Entramos numa loja e, quando saímos, vimos, sei lá, umas 40 pessoas nos seguindo e dizendo: ‘Os Beatles estão aqui. Os Beatles estão na cidade.’
Beware of Darkness
“Compus em casa na Inglaterra num período em que alguns amigos do templo Radha Krishna estavam hospedados em casa: Cuidado com Maya. Gosto da melodia, é meio estranha. A letra é auto explicativa.” (LP All Things Must Pass, 30 de novembro de 1970).
Chegou um momento em que ficamos com medo de parar, aí alguém disse: ‘vamos para a Hippie Hill’. Atravessamos a rua e entramos num parque e lá dentro alguém falou: ‘Vamos nos sentar’. Sentamos cercados de gente que olhava para George como se ele fosse o Messias. Aí o inevitável aconteceu.Um violão foi passado de mão em mão até chegar no George. Ele pegou o instrumento, mostrou alguns acordes, devolveu, nos levantamos e caminhamos para a limusine.
Alguém ofereceu STP para George, que recusou educadamente. O cara gritou: ‘George me deu um fora’. Daí a multidão ficou hostil. Corremos até o carro, entramos e trancamos as portas. Cercaram a gente, as caras coladas nos vidros. George sempre pensou nas drogas como um meio de abrir a mente. Haight-Ashbury lhe abriu os olhos. Ele parou de usar drogas , e adotou a meditação.” (Wonderful Tonight)
All Things Must Pass
“Quando compus All Things Must Pass estava tentando fazer algo ao estilo de Robbie Robertson e foi o que aconteceu. Acho que a idéia geral era expressar todo tipo de escritos místicos e também psicodélicos como os de Timothy Leary.” Robbie era guitarrista da The Band. (LP All Things Must Pass, 30 de novembro de 1970).
Badge
“Compus essa com Eric Clapton. O Cream decidiu gravar um álbum de despedida, Eric tinha uma melodia, ajudei a completar e depois fizemos os versos. Quando anotei, escrevi bridge, que é como chamamos a parte do meio. Eric, que estava sentado do outro lado, leu errado. ‘O que é isso, badge?’ Eu disse que era bridge. Ele acabou dando esse nome à música. O Ringo chegou quando estávamos no verso, ‘I told you not to drive around in the dark. I told you…’ E Ringo ‘about the swans that live in the park’. É meio bobo, mas foi assim que aconteceu. Ao vivo, Eric cantava no final ‘Where is my badge?’” (LP Goodbye, do Cream, 28 de fevereiro de 1969).
Give me Love
“Às vezes a gente abre a boca sem saber o que vai falar, o que quer que se fale é o ponto de partida. Se isso acontece e você tem sorte, pode se transformar numa canção Esta música é uma oração, uma declaração de princípios entre eu e o Senhor e quem mais quiser.” (CD Living In The Material World, 7 de maio de 1973).
Here Comes the Sun
“Foi escrita numa época em que a Apple parecia uma escola, onde tínhamos que bancar empresários com um monte de papéis para assinar. O inverno parece durar pra sempre na Inglaterra, então quando chega a primavera, é um alívio. Um dia resolvi faltar n a Apple e fui para a casa de Eric Clapton. Peguei um violão, fui passear no jardim, aliviado de não ter que lidar com contadore,s e compus a música.” (LP Abbey Road, 26 de setembro de 1969).
I Me Mine
“I me Mine é o problema do ego. Existem dois “eus”. O Eu pequeno é quando a pessoa diz ‘Eu sou isso’ e o grande Eu, isto é OM, o todo completo, a consciência universal despida de dualidade e ego. Swami Vivekananda diz: ‘Cada alma é potencialmente divina, o objetivo é manifestar essa divindade.’ Ele quis dizer a fusão do pequeno Eu com o grande Eu (o oceano).
Experimentar LSD foi como se alguém me projetasse no espaço. A mente vai longe muito rápido , eu tive flashes, percepções de ter percorrido o universo e voltado ao ponto onde comecei, porque a relatividade gira o tempo inteiro. Isso me confundiu um tempo e, depois de uma dose de ácido, percebi que estava amarrado nessa coisa que, depois, percebi se chamar relatividade. Então o grande Eu é o absoluto, mas estamos no relativo, onde as coisas são bom-mau, sim-não, em cima-embaixo, preto-branco. Acho que é por isso que o chamam de droga do céu inferno, mas a vida é céu e inferno, nós a transformamos num ou noutro. Não existe céu e inferno além da relatividade.
Então, de repente, olhei em volta e tudo que conseguia ver tinha a ver com meu ego, sabe, como ‘este pedaço de papel é meu’, ‘dá para mim’, ‘eu sou’. Isso me deixou maluco. Eu odiava tudo que dizia respeito ao ego, era um flash de tudo que era falso e passageiro, que eu não gostava.
Mas depois percebi que havia alguém aqui além do velho tagarela (era assim que eu me sentia, eu não tinha visto, ouvido ou feito nada na vida, mesmo assim não tinha parado de falar). Quem sou eu se tornou a ordem do dia.
Enfim, foi isso que saiu de dentro de mim: I Me Mine. A verdade dentro de nós precisa ser percebida: quando você percebe que tudo mais que você faz, toca e cheira não é real, então consegue perceber o que é a realidade e pode responder a pergunta: “Quem sou eu?”
Fonte: O Globo, por Jamari França